domingo, 21 de novembro de 2010

Igualdade Racial - o fórum da UFRB e o poema

Participei, há poucos dias, do IV Fórum de Igualdade Racial promovido pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Tive o privilégio de ministrar uma oficina para adolescentes do Ensino Médio e jovens universitários com o tema "Fortalecendo a auto-estima do jovem afrodescendente". As discussões, reflexões e troca de experiências durante a oficina foram riquíssimas, e me senti feliz por "fazer a diferença". Compartilho um poema que escrevi há mais de doze anos, sobre racismo e escravidão:

CORRENTES  E  CHAGAS


Será que o senhor me entenderá?
Será que o Senhor me atenderá?

As correntes ainda são pesadas
A vida ainda é pesada
As torturas ainda são pesadas
A angústia ainda é pesada
As cargas ainda são pesadas
A sina ainda é pesada

Será que o senhor se perpetuará?
Será que o Senhor te perdoará?

As chagas são profundas
A dor é profunda
As mágoas são profundas
A tristeza é profunda
As humilhações são profundas
A decepção é profunda
 Será que o senhor se acobertará?
Será que o Senhor me acolherá?

A vida acorrenta
As chagas torturam
A sina, humilhante
As mágoas, cargas
A angústia dói
As decepções entristecem

Será que o senhor se selvará?
Será que o Senhor me salvará?

Será que alguém me entende
quando grito
as correntes da escravidão
ainda não foram rompidas?
as chagas do racismo
ainda não foram curadas?

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Os mineiros chilenos e a caverna de Platão

O antídoto para a guerra, e todas as suas nefastas consequências, obviamente, é a paz. Entender ou visualizar a guerra é muito fácil. Basta ver os que caem. Provocá-la é ainda mais fácil.

Mas, entender a paz, aceitá-la e disseminá-la não é tão simples quanto possa parecer. Antes de qualquer coisa, é preciso ceder. Dar um passo atrás, reavaliar a situação e abrir mão de posições. Evitar o confronto às vezes quase inevitável em função de uma posição extremamente desconfortável.

Como, por exemplo, o caso dos 33 mineiros presos nas profundezas da terra, no meio do deserto mais seco do mundo, o Atacama, no Chile.

Foram 69 dias presos em uma mina, convivendo num buraco, 600 metros abaixo da superfície. Afundados numa convivência delicada e alimentada por temores, incertezas. À espera da vida, do retorno à sua própria e rotineira vida.

Providencial, a paz reinou entre eles. Como será que ela foi construída, conquistada e disseminada? Precisamos saber para que nos sirva de exemplo.

Prevaleceu a paz e com ela, a vida em toda a sua plenitude.

Muita gente ganhou com o show em torno do salvamento desses mineiros. Pouco importa, pois as maiores vitoriosas foram a vida e a paz, promovida com relações de respeito, diálogo, participação e cooperação.

Os 33 mineiros construíram uma cultura de paz e um “pacto de convivência” trabalhado em profundidade.

Interessante que, enquanto eram acompanhados pelo mundo, literalmente, estavam sozinhos, com pouca luz, calor e umidade intensos, sem sol, estrelas, ar puro, vento. Enfim, aquilo a que não damos tanto valor assim, pela presença discreta em nossas vidas.

Também não tinham a presença dos familiares, nem os problemas, é claro, derivados das dificuldades de relacionamento humano.

De certa forma trouxeram, para os dias de hoje, o mito da caverna de Platão. Na caverna, para o genial filósofo grego, havia seres humanos que ali nasceram e cresceram. Como metáfora, digamos que os mineiros renasceram – ao não ser soterrados – e cresceram – ao encontrar maneiras de autocontrole e determinação para resistir à prisão no fundo de uma mina.

Os prisioneiros na caverna de Platão somente enxergavam uma luz, no fundo, que projetava sombras de outros seres. Sombras que, para eles, pareciam a realidade.

Um dos prisioneiros decidiu fugir e, ao sair, descobriu que as sombras, na verdade, eram de homens iguais a eles, mas que nasceram e viviam fora da caverna.

Ao voltar, tentou contar o que vira, mas sofreu violências e morte. Ora, os mineiros do Chile inicialmente se deslumbraram com as forças que se uniram para salvá-los. Agora temem o futuro, a pobreza, as dificuldades, enquanto são assediados pelos que querem faturar com a história, em livros e filmes.

Percebem, então, que as sombras eram de homens iguais a eles, prisioneiros não no fundo de uma caverna, mas das convenções e dramas típicos de nossa espécie. Como os mineiros, tentamos sair da caverna, chegar à luz e viver intensamente. Buscamos a paz, enquanto fazemos mais guerras.

Temos dificuldade de lidar com o jogo das sombras e da realidade. Como previra Platão, dentro e fora da caverna, há dificuldades para ir em frente, embora, nos ciclos históricos, ocorram avanços.

Caminhamos, mas tropeçamos nas sombras, distraídos, parodiando o inesquecível chão de estrelas. Temos que seguir pelo caminho da paz, pois outro não há, e valorizar as coisas reais que, 600 metros terra adentro, tanto faziam falta aos mineiros chilenos.

Temos que viver com dignidade e deixar viver com respeito, e isto já será uma epopéia e tanto, embora não seja tema para livros e filmes.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Dia Mundial do Professor: 5 de outubro

P R O F I S S Ã O    D E      F É
Esta é a minha singela homenagem aos professores que conquistam o grau de Educadores:


A agricultura é uma profissão de fé. Fé, não no sentido de frequentar igreja, nem de ficar parado, esperando que Deus lhe conceda os seus desejos. Fé em sua acepção mais profunda, de acreditar e fazer a sua parte, mesmo sem a garantia do final desejado, mesmo sem enxergar aquilo que se quer alcançar. Fé como uma mescla de certeza, determinação, esperança e entrega ao processo, independentemente dos resultados.

O segredo do agricultor é a sua fé. Não há qualquer garantia quanto à colheita, mas ele planta mesmo assim. Ano após ano, movido pela fé, ele prepara a terra, seleciona as sementes, espalha-as criteriosamente e passa a cuidar de sua plantação.

Na realidade, durante algum tempo, quem olhar para o terreno, nada verá, exceto o solo revolvido, pequenos montes de terra e uma aparência desértica. O agricultor, entretanto, sabe que aquela cena aparentemente caótica oculta poderosos processos de transformação. Silenciosamente, as sementes começam a interagir com o solo, a água e o calor do Sol. Lentamente, uma nova vida tem início. Tudo isso é invisível para quem mira a terra, mas o agricultor mantém-se inabalável em sua fé. Sem se importar com o que as aparências ou com que pode ser visto na superfície, ele cuida do terreno diariamente, incansavelmente. Esparge água na medida certa. Arranca as ervas daninhas. Afugenta os animais que podem atacar a plantação. Protege-a das intempéries da natureza. Vigia para que pragas não se disseminem. Aduba o solo.

Mesmo sem a garantia da colheita, o agricultor acredita tanto que continua a fazer tudo o que é necessário e tudo o que estiver a seu alcance, para que o máximo de sementes possa brotar, se desenvolver e frutificar. Ele tem consciência de que há fatores críticos que se encontram totalmente fora de seu controle – a seca, a enchente, o vendaval, as pestes e variações bruscas de temperatura... Essa consciência, ao invés de desmotivá-lo, torna-o mais humilde e, ao mesmo tempo, obstinado em fazer a sua parte, no melhor de suas possibilidades.

Desse modo, se as condições climáticas forem favoráveis, ele terá uma superprodução. Se forem razoáveis, ele conseguirá, ao menos, recuperar o seu investimento. Se o clima for desfavorável... bem, o agricultor sabe que essa possibilidade existe e já a sofreu várias vezes, mas ele opta por não incluí-la em suas previsões, pois, se o fizesse, desistiria de seu ofício. E o restante da sociedade passaria fome.

Há vários tipos de agricultor. Dentre eles, um se destaca pela preciosidade das sementes que planta e pelo tempo que elas levam para brotar e frutificar. Essas características do seu cultivo exigem desse tipo de agricultor as mais altas doses de paciência e perseverança. Paciência, muita paciência. Perseverança, muita perseverança. Paciência e perseverança combinadas. Isso sem falar da fé inabalável e da dedicação incansável.

Trata-se do Educador. Seus campos de cultivo são os Corações e as Mentes dos educandos – terrenos férteis, mas cujo preparo e manutenção exigem grande esforço. As sementes que planta são o bom exemplo, a sabedoria e o encorajamento. A água que esparge é a sua palavra, portadora não só de conhecimento, mas também de sentimentos construtivos. O afeto que irradia através de seu olhar, gestos, posturas, do que diz e do que silencia, constitui a luz e o calor que energiza o solo.

Alguns agricultores precisam trabalhar durante semanas, talvez meses, até que chegue o momento da colheita. Já ao Professor, não é dado ver os frutos de seu trabalho. São raras as oportunidades em que ele próprio testemunha o desabrochar dos educandos ou a frutificação de seus ensinamentos, pois as sementes que semeia levam dez, quinze, vinte anos para dar frutos.

Outra característica que distingue o Educador dos demais agricultores: ele planta, mas não lhe cabe colher. Quem colhe é o próprio educando, a sua família e a sociedade como um todo. Por essa razão, o ofício de Educador caracteriza-se pela abnegação. Não qualquer abnegação, mas a legítima, que implica em abnegação de si mesmo, abnegação dos desejos de popularidade e reconhecimento, abnegação dos resultados imediatos de seu trabalho, abnegação da busca por “soluções mágicas”, “atalhos milagrosos” ou “respostas fáceis” aos desafios que enfrenta.

Se o Educador não tivesse tal abnegação, exigiria “garantias prévias” quanto ao resultado de seus esforços, cobraria a possibilidade de participar dos benefícios da colheita. Ninguém pode lhe dar a certeza de que os ensinamentos que semeia encontrarão acolhida entre os educandos, que suas qualidades como educador serão reconhecidas ou valorizadas, que sua dedicação ao ensino será recompensada pelo aprendizado dos estudantes. Este ofício exige, por sua própria natureza, total concentração no processo e sincero desprendimento dos resultados. Em outras palavras, exige entrega.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Cultura de Paz contra a violência

Uma versão levemente reduzida do artigo a seguir foi publicada pelo JORNAL DA TARDE, de São Paulo, na seção Opinião (pag. 2), em sua edição de 25/09/2010.

Quem de nós fica tranquilo quando um filho ou filha sai à noite, em busca de diversão nas baladas da juventude?

O medo da violência, ironicamente, leva muitos a clamarem por mais violência para aplacá-la. Como se bombeiros usassem gasolina na luta contra um incêndio.

É o que ocorre quando se opta pela repressão como único (e discutível) antídoto aos crimes que alguns programas sensacionalistas fazem questão de alardear com máximo estardalhaço.

Outros brandem as questões estruturais como justificativa para os crimes. Ou seja, só teremos uma sociedade mais pacífica se e somente se todos os problemas estruturais como fome, falta de saúde e de educação forem solucionados.

Tal crença, contudo, conduz ao imobilismo, à desistência de se encontrar alternativas para a violência. Se formos esperar que toda a estrutura social seja reformada, para só depois agir, estaremos perdendo inúmeras oportunidades de realizar pequenas ações e intervenções pontuais que, somadas, podem resultar em significativas melhorias.

A cultura da paz parece-me mais apropriada, exequível e eficaz. Ela nos convida a aproveitar cada espaço – sala de aula, bar, condomínio, escritório, praça – como um fórum permanente de reflexão e de busca de opções para a construção da paz.

Mas isto funciona mesmo, no dia a dia, em que motoristas param seus carros para brigar porque um teria fechado o outro?

Sim, porque o verdadeiro antídoto contra a violência é a paz. Não há outro. Paz entendida como respeito, diálogo, empatia e participação cidadã. Até porque a forma mais disseminada e frequente de violência é a cometida entre familiares e parceiros íntimos. Logo, parte considerável dos crimes não é cometida por profissionais do submundo, e sim por pessoas comuns, respeitáveis cidadãos que, em determinado momento, perdem a cabeça por situações corriqueiras – uma discussão doméstica sem sentido ou uma provocação na rua.

Um dos melhores lugares para se fomentar os valores da paz é a sala de aula. Para isso, teremos que tornar o ensino cada vez mais atraente e com conteúdo significativo, sintonizado com as necessidades do mundo real e com o mundo virtual das redes sociais.

Nas regiões de baixa renda, é necessário que as escolas reconheçam as condições de vida dos estudantes, considerando situações como a inexistência de mesas, cadeiras e de ambiente para uma prosaica lição de casa. Se não há moradia digna, como exigir que o aluno estude no lar? Até que ponto os cursos de Pedagogia preparam os futuros educadores para lidar com essa realidade e compreender as necessidades de grande parcela dos educandos?

Parecem ser detalhes, mas fazem diferença. Atividades artísticas e esportivas, estudos ao ar livre, jogos, realização de ações sociais na comunidade e uso pedagógico da internet podem mudar a visão que os alunos têm da educação. E, com isso, abrir espaço para a discussão e vivência de temas como a pacificação de corações e mentes.

Não se trata de um movimento rápido, imediatista, com resultados ao final do expediente. É uma mudança cultural, uma revolução real, que trará frutos em médio prazo, pela mudança de atitudes individuais e pela construção coletiva de uma sociedade mais justa, solidária e inclusiva.

Temos que começar logo. Estimular os professores que já ousam introduzir elementos da cultura de paz em suas classes. Não há investimento mais relevante hoje – fortalecer a escola, o professor, o estudante e sua família. Impedir que as comportas da violência transbordem e criar um futuro do qual possamos nos orgulhar.

Mostrar às crianças e jovens que há caminhos, sim, para a solução de conflitos - longe da agressão e criminalidade.

Apontar saídas para a pobreza e exclusão a partir do conhecimento, do trabalho, dos valores humanos e da cooperação social.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

DIA INTERNACIONAL DA PAZ

Divulgo texto do jornalista Nereu Leme, da Casa da Notícia:

No Dia Internacional da Paz, Feizi Milani afirma que a paz precisa ser conquistada

O Conselho Parlamentar pela Cultura da Paz, da Assembléia Legislativa de São Paulo (CONPAZ) e a Universidade Aberta do Meio Ambiente e Cultura de Paz, da Prefeitura de São Paulo (UMAPAZ), comemoraram nesta terça-feira (21/9/2010) o Dia Internacional da Paz, estabelecido pela ONU.

Defensor da disseminação do direito universal à paz como premissa para construir uma sociedade mais justa e formar jovens mais conscienciosos acerca de sua importância social, Feizi Milani, Professor de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, fez uma palestra para alunos e professores do Curso Carta da Terra em Ação na UMAPAZ e disse que “a paz não acontece sozinha; tem que ser construída”.

Ele explicou, tanto na reunião do CONPAZ quanto na UMAPAZ, que o desafio da sociedade moderna é sensibilizar e mobilizar cada vez mais pessoas para a construção da paz:

“A paz requer compromisso e engajamento de cada um de nós e de toda a sociedade, porque a paz se manifesta não pela força, mas pela compreensão”, disse Feizi Milani.

De acordo com o médico e educador, é possível se identificar dois processos simultâneos hoje no mundo: desintegração e integração. O primeiro leva a sociedade ao declínio e o segundo à emergência de uma nova cultura.

Explicou, por exemplo, que no tema sustentabilidade, nunca houve tanta agressão ao meio ambiente, o que representa o processo de desintegração.

“Mas, também nunca houve tanta consciência de que precisamos fazer alguma coisa para salvar o planeta, além de ações concretas com esse objetivo. Esse é o processo de integração que deve ser seguido pela sociedade, no nível macro e pelos indivíduos, no nível micro”, explicou.

A experiência profissional deste médico-educador deu origem ao livro “Tá combinado! Construindo um pacto de convivência na escola”. Milani também fundou o Instituto Nacional de Educação para a Paz (INPAZ), uma organização não governamental e sem fins lucrativos, que reúne uma rede de profissionais qualificados e experientes de várias regiões do Brasil. Em seus 10 anos de existência, a ONG capacitou centenas de professores e jovens, publicou três livros e participou de eventos de grande relevância social e educacional.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Educação para o mercado de trabalho

Toda vez que a economia brasileira cresce em ritmo mais acelerado, há uma reclamação comum às empresas: faltam profissionais preparados para preencher as vagas existentes. A formação oferecida pelo Ensino Médio e pela Universidade não contemplaria as necessidades do mercado de trabalho. Muitos defendem, então, que haja ênfase absoluta em conhecimentos e técnicas requeridos para o dia a dia do trabalho. Ou seja, que a formação acadêmica seja definida pelos ditames e demandas do mercado..

Não nos esqueçamos, contudo, que a qualidade profissional de qualquer trabalhador depende diretamente de suas qualidades como ser humano. Ninguém se torna um profissional sem antes se constituir como ser humano. Esse ser humano pode se caracterizar por honestidade e integridade, por exemplo, ou pela ausência dessas qualidades.

Qual é o empresário interessado em contratar um profissional mentiroso ou desonesto? Alguém já calculou quantos recursos financeiros já foram queimados por profissionais cujo caráter não era fundamentado em valores éticos? Pensemos nos prejuízos causados pelas variadas formas de corrupção, tanto em órgãos governamentais quanto no setor privado, pela venda de informações comerciais ou segredos industriais, e outras escolhas moralmente equivocadas... Tudo isso foi feito por profissionais altamente competentes em suas especialidades, muitos dos quais oriundos das melhores escolas!

Essa opção entre “capacitação técnica” e “formação humana e ética” é ilusória, porque não são excludentes. Ao contrário, são complementares, e uma exige a outra. Capacitação voltada somente a habilidades técnicas e conhecimentos científicos poderá solucionar a demanda por mão de obra em curto prazo, mas irá desencadear consequências negativas por muito tempo. Por outro lado, que sentido faria prover uma formação humana e ética desconectada das necessidades concretas da sociedade?

Logo, por mais difícil que pareça, temos que educar a criança, o adolescente, o jovem para ser um profissional, um eleitor, um contribuinte e um consumidor consciente. Em suma, para ser uma pessoa que trabalha, que exerce a cidadania, que se dedica à família, aos amigos e ao bem comumda sociedade.

Não podemos retroagir ao ambiente retratado, brilhantemente pelo genial Charles Chaplin no filme “Tempos Modernos”. O ser humano não deve ser reduzido à “mão de obra”. Ninguém, exclusivamente, profissional. Somos pessoas com múltiplas dimensões e potencialidades, e a educação pode e deve nos ajudar a sermos melhores e plenos, em todos os sentidos.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Os males do excessivo individualismo

A dificuldade de se trabalhar em grupo reside no fato de que esse processo depende de um conjunto de qualidades, atitudes e competências que muitos não desenvolveram

Um dos paradoxos de nossos dias está na exigência de profissionais competitivos, de um lado, e de cidadãos que saibam trabalhar de forma ética e viver em comunidade, de outro. Ou seja: querem que saibamos partilhar, mas somos estimulados, ensinados e cobrados a vencer e superar o próximo.

Exatamente porque essa cultura ainda predomina é que precisamos trabalhar, de forma cada vez mais sistemática, continuada e eficiente, para promover princípios éticos. O ambiente escolar e universitário deve propiciar situações concretas por meio das quais os estudantes vivenciem experiências de cooperação, resolução de conflitos e convívio com as diferenças. Não basta apregoar esses valores, é preciso que eles sejam exercitados na prática.

Precisamos perceber a relação direta de causa-efeito entre o discurso da competição extrema, do sempre levar vantagem, do vencer a qualquer custo, do cuidar somente de si e do que é seu, e o panorama geral da sociedade, marcado por violências, destruição ambiental, solidão e vazio existencial.

Muitas pessoas fazem de conta que uma coisa não tem nada a ver com a outra. É como se pensassem: eu posso ser egoísta, mas a sociedade deve ser solidária! Como é possível haver uma sociedade humanizada, justa e acolhedora formada por pessoas individualistas e egocêntricas?

A cultura ocidental contemporânea se caracteriza pelo individualismo e pelo imediatismo. E como todos nós estamos imersos nessa cultura, tendemos a acreditar que trabalhar em grupo seja uma tarefa quase impossível, algo que exija um esforço sobre-humano. Reconheço que não é fácil trabalhar em grupo; no entanto, "Sozinho se vai mais rápido, mas juntos se vai mais longe".

É trabalhando em grupo que a pessoa pode aprender mais, enriquecendo sua visão ao entrar em contato com percepções diferentes. É impossível a alguém enxergar a multiplicidade de ângulos de uma questão – principalmente se esta for complexa. Ora, a maior parte dos problemas que uma empresa (ou a sociedade) enfrenta são de grande complexidade, e requerem abordagens que incluam a diversidade, a multiplicidade e a multidimensionalidade. Isso só pode ser alcançado em grupo.

A dificuldade de se trabalhar em grupo reside no fato de que esse processo depende de um conjunto de qualidades, atitudes e competências que muitos não desenvolveram ao longo de um processo de escolarização tecnicista – empatia, escuta ativa, respeito às opiniões contrárias, tolerância para com o jeito de ser de cada um, humildade em reconhecer que não é o dono da verdade, cortesia etc. É por intermédio do diálogo e da participação que um grupo se constrói.

Obviamente, ninguém nasce sabendo trabalhar em grupo. É preciso aprender, e esse aprendizado se dá na prática e ao longo da vida. Observemos os estágios do desenvolvimento infantil: o bebê não admite partilhar seus brinquedos; a criança aceita emprestar o seu brinquedo a outra, desde que haja uma permuta; a criança maior já é capaz de participar em esportes coletivos; e o adolescente busca ativamente engajar-se em algum grupo e sente prazer na partilha. O amadurecimento se dá em direção a relações de cooperação e interdependência.

Mas a cultura pode tolher esse aprendizado. Não podemos tolerar o excessivo individualismo, egoísmo que nada constrói. Temos que reaprender a trabalhar – e a nos desenvolver – em equipe.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Medicina, Saúde e Universidade - reflexões que permanecem

Fui o orador de minha turma, na cerimônia de colação de grau em Medicina, na Universidade Federal de Alagoas. Já se vão mais de vinte anos desde aquele 9 de julho de 1988, hoje sou professor do curso de Medicina da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública. Continuo a sentir que várias das idéias que expressei no discurso de formatura permanecem atuais - por isso, compartilho-as com vocês:


(...) À medida que avançávamos no curso, fomos descobrindo, para nosso espanto e decepção, que Medicina não é sinônimo de Saúde. Pelo contrário, a Medicina mecanicista, tecnicista, mercantilista e ultra-sofisticada muitas vezes praticada atualmente tornou-se um empecilho à verdadeira melhoria das condições de saúde da população como um todo. Pois que Saúde pode ser considerada como o estado de completo bem-estar físico, mental, social e espiritual. Não pode ser vista apenas como ausência de doença, lesão, debilidade ou deficiência.

Esta visão ampla e global da Saúde permite-nos compreender que ela está diretamente relacionada e é, na realidade, dependente de fatores e questões tais como salário real, qualidade de vida, nutrição, condições de habitação, saneamento básico, higiene, produção e distribuição de alimentos, tradições e costumes populares etc. Basta acrescentarmos que hoje, no Terceiro Mundo, a doença mais freqüente, mais indecente e que causa maior número de mortes é a fome. E é também a doença que mais facilmente poderia ser evitada, pois existe uma vacina altamente eficaz e simples: panela cheia todos os dias!

Percebemos, então, que os médicos deveriam estar plenamente engajados na discussão e solução dos problemas mais amplos da sociedade, e não apenas preocupados em diagnosticar doenças e medicar doentes. Afinal, se a Saúde depende de tantos fatores, por outro lado, é ela que viabiliza toda e qualquer atividade humana.

Hoje, nós médicos estamos sentados nos consultórios, nos hospitais e nos gabinetes burocráticos, aguardando passivamente que as pessoas adoeçam, para que então possamos intervir. Entretanto, não é este o nosso papel e nem é esta a nossa missão.

Não obstante, para nossa vergonha e para descrédito das instituições educacionais brasileiras, podemos afirmar que nos seis anos que passamos na Universidade, não houve “tempo”, “espaço” ou “abertura” para debater questões prementes, tais como a fome, os menores abandonados, o alcoolismo, a toxicomania, a prostituição, o aborto, a morte e tantas outras... Jamais tivemos a oportunidade de participar numa discussão na qual as causas e conseqüências desses fenômenos fossem abordadas em seus aspectos médicos, sociais, psicológicos, morais, históricos, políticos, legais e econômicos. Chegamos, então ao ponto de questionar: para que serve o Conhecimento? Para que serve a Universidade, se o conhecimento que ela transmite nos distancia e aliena da realidade em que vivemos?

A impressão que se tem é que a Universidade brasileira está situada não na Terra, mas em outro planeta, talvez Saturno, onde os anéis coloridos distraem e desviam a atenção dos problemas concretos que exigem solução imediata.

A Universidade precisa corrigir os seus rumos, reconsiderar tudo que tem feito até agora, sair da “torre de marfim” em que se isolou e olhar para si própria como um dos membros que compõe o organismo vivo da sociedade. Se nós, alunos e professores universitários, tivemos uma oportunidade melhor que a maioria de nossos concidadãos, é nosso dever inescapável oferecer uma parcela maior de trabalho para o bem-estar coletivo.